domingo, 23 de março de 2014

O Parca Negra (2º episódio)

Tentei dar descanso à velha tecnologia e agarrar-me ao papel e à caneta, a recordar-me nos escassos minutos seguintes que teria que seguir uma linha contínua de pensamentos e que ia perder tempo a passar tudo da folha para o ecrã, no restante manuscrito.
Deixei de parte a sensibilidade para com o portátil e tornei a visualizar o mesmo wallpaper de sempre com a saudação de sempre e com a luminosidade de sempre, de quase cegar alguém.
A monotonia que me ameaçava trancar os olhos não foi suficientemente forte contra o post-it colado mesmo à frente do meu nariz, com a data de entrega para a editora já no segundo aviso, por isso mesmo, posto o assunto em pratos limpos e com uma grande caneca de café sem açúcar decidi por mãos à obra…
“De facto, poderíamos surpreendermos-nos com os pensamentos dos demais sobre a nossa pessoa. Um aluvião de obscenidades conformistas que nos deixavam aquém da suposta confiança, mas como perdoar, o que não possui perdão, ou qualquer chance de ser perdoado?”
Nem o chão me ajudava a descongelar as ideias. Senti que um tornado se gerava e era igual ao ruminar incessante de uma vaca.
Observei o sofá gasto, a mesa velha, o chão igual de azulejo branco, o candelabro suspenso no tecto demasiado velho para a modernidade e conclui que eu era uma velha. Uma velha solitária que mal tardasse arranjaria uma mão cheia de gatos e lhes daria nomes a começar em Mimi e a acabar em Rodolfo.
Tinha de admitir estar encrencada, precisava de um bom descanso, mas com a assombração daquela data no papel amarelo florescente, o sono só me traria pesadelos.
“ – Tu precisas é de te apaixonar!” – Disse-me uma vez Vanessa, após milhares de tentativas de me arranjar com alguém.
O que eu lhe respondera na altura? Que não me servia de paixões e que não estava interessada em romances.
“ – Pois bem, então envelhece e fica uma velha rabugenta.”
Já não a via à uma semana, pelo menos, não que não quisesse, mas, tinha de terminar o trabalho. Ergui-me do soalho e decidi que estava na hora de um banho quente para repor as ideias. Pousei o portátil na mesa de mogno e enquanto me dirigia para o quarto, não pude deixar de reparar num objecto não identificado pelo canto da vista. Foquei o olhar na sua direcção e o que vi deixou-me perplexa.
De baixo da porta do hall de entrada encontrava-se o envelope azul petróleo com um papel colado.
“Talvez não tenha sido muito claro e peço perdão.
Para: Cassandra.”
O meu nome. Ele conhecia o meu nome, onde dormia, onde tomava os meus cafés e eu nem a sua cara tinha visto.
Era uma partida de mau gosto com certeza. Deixei a missiva em cima da cabeceira e entrei numa disputa parola entre decidir se tomava banho tal como Deus me trouxe à terra ou se vestia um biquíni...

Diana Silva

23/03/2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

O Parca Negra (início)

"E se o mundo fosse uma camada pastosa de mistérios e intrigas onde no final a página em branco se escrevesse sem borrões de tinta?"
Terminei o rascunho que se libertou da minha mente para o papel e me ilibou as memórias tão próximas e perceptíveis. Gostava de responder-me a mim mesma, de tornar a minha vida numa linha cheia de curvas e contra curvas onde cada surpresa nos pudesse olhar de soslaio antes de abrir a caixa de Pandora. Escutei de minutos a minutos a campainha da porta do café onde se amontoavam lado a lado e até em séries de quatro, sofás incorporados às mesas, de napa vermelha gasta, com cheiro a mofo devido à humidade.
Naquela noite tempestuosa onde as pessoas procuravam abrigo e um bom café que lhes acalenta-se a alma, eu procurava simplesmente algo que me inspirasse. Não tinha o telemóvel ligado e maior parte das vezes esquecia-me da sua existência, chegando quase ao ponto de já ninguém me ligar ou enviar ocasionalmente sms's. 
Não vou esconder o facto de isso não me interessar minimamente visto a que o telemóvel para mim era apenas mais uma maneira de a sociedade gastar dinheiro.
Que iria eu escrever mais para além daquela centésima folha rebuscada?
Suspirei, inspirei e inalei o aroma do café semi frio enquanto dava voltas e mais voltas e voltava ao mesmo...
- Boa noite, pediram-me para lhe entregar isto.
Olhei para a empregada de balcão de faces coradas e bata tingida com manchas de gordura, até lhe chegar às mãos estendidas sobre a mesa. Aceitei o envelope agradecendo.
- Sabe dizer-me mais ou menos quem era ou como era? - perguntei antes de abrir o envelope azul petróleo. 
Cor interessante.
- Não lhe sei dizer, quem, não deixou nome, mas, era um senhor e trazia vestida uma parca.
Assenti e sorri, com isto a empregada afastou-se e voltou ao seu trabalho.
Podia ser engano? Puro acaso? Não resolveria mistério nenhum se simplesmente continuasse a olhar para a carta como uma idiota de certeza. Abri o envelope com cuidado desnecessário a pensar que poderia advir daquele atípico gesto a minha próxima especiaria para a dose certa de inspiração, mas tudo o que me foi entregue não passava de letras direitas e duras. Uma caligrafia uniforme que se estendia ao logo da folha dobrada parcialmente em três, perfumada docemente criando uma antítese do que entendia.
Não vira o homem da parca e tão pouco interessada estava em fazer olhinhos a alguém, provavelmente a empregada enganara-se na pessoa, só podia.
Deixei a leitura a meio do que me ocorreu ser uma prosa meio lamechas sentindo-me uma invasora de propriedade alheia. Fechei novamente o envelope, encerrei o velho portátil que mais dia, menos dia teria de se reformar e saí sem levar a declaração sentimental comigo.
Onde me refugiar agora? Tinha uma noite inteira para tentar terminar um dos últimos capítulos, mas onde conseguir o que me faltava?
Deixei que os meus músculos me guiassem para casa à procura do que necessitava, onde me fizessem parar assim que chegasse, era onde iria permanecer por mais um par de horas. Tudo o que conseguira naquele café fora umas linhas conturbadas e o lapso de uma empregada de mesa. 
De certeza que não iria ver o correio assim que chegasse a casa…

Diana Silva


20/03/2014