quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O Parca Negra (22º Episódio)

"19, Fevereiro de 2007
Assim que chegava da escola, punha-me trancada no quarto a estudar, naquele dia lembro-me que estava a estudar história, ia ter um exame na quinta-feira e precisava de melhorar a nota. O último setenta por cento que mostrei à minha mãe não foi o suficiente, nunca era na verdade, para ela.
Já à semanas que não sabia de nada do meu mano, ele tinha sido destacado à um mês e meio para a Chechênia, cada dia que passava punha-me mais nervosa, fiquei impaciente e a única maneira de me distrair era estudar e escrever, tinha de ter a mente ocupada. 
De vez em quando recebíamos cartas, enviávamos resposta logo de seguida, mas, demorava sempre imenso tempo a ser retornada.
Já estava na terceira página de apontamentos quando ouvi um grito absurdo no primeiro andar, tirei os fones dos ouvidos e pus-me à escuta. Era a mamã, gritava algo que eu não consegui entender. Larguei tudo o que tinha em cima da mesa e pus-me num salto na sala de estar. 
O meu coração quase parou quando vi o meu pai a abraçar a minha mãe, quando vi as lágrimas a correr livremente e abundantemente pelas faces dos dois. Um oficial estava de pé com a expressão de pesar carregada, lágrimas que ameaçavam sair dos olhos mas que se mantinham, um olhar azul tão profundo, tão gelado. 
O mundo caiu-me aos pés quando o meu pai se virou para me encarar, segredou algo para a mamã que se endireitou e percorreu o curto espaço até mim, agarrou-me pelos braços com carinho, com cuidado, era o que diferenciava o papá da mamã, ele nunca me tocava num fio de cabelo se não fosse para me apaziguar, para me dar amor.
- Cass, o teu irmão... - a voz embargada, o nó da sua garganta passou para a minha.
Não foi preciso dizer mais nada, fiquei em estado de choque, não chorei, mas abracei o meu pai com toda a força que me restava, não deixei de olhar para o oficial sobre o ombro dele, e ele retribuía-me o olhar. Não tão cedo, não tão novo, ele não merecia, ele não merecia ir assim. 
- Como? - dei por mim a perguntar, com a voz rouca, a garganta seca de emoção.
Ele manteve-se firme, mas a voz profunda emanava a fúria controlada.
- A caminho do local, o transporte dele foi intersectado, eles sabiam onde e quem era. Abateram o condutor e todos os seguranças, deixaram o Miguel para o fim, fizeram dele um refém, sabiam que ele era preciso... no fim...
- Não - pedi - não diga mais.
Ouvi o pranto da minha mãe, o meu pai a estremecer e fiz-lhe sinal para ir para o lado dela novamente mas ele recusou-se a largar-me e levou-me com ele para o sofá, onde nos abraçou às duas.
Mais tarde, muito mais tarde, estava deitada na minha cama, sem sono, sem qualquer vontade de fechar os olhos. Tinha uma foto minha e do meu irmão ao peito, estava abraçada à moldura e estava assim à horas.
Era meia noite e quarenta e cinco quando ouvi a porta do meu quarto a abrir, uma figura esguia, despenteada com algo comprido na mão entrou pelo meu quarto.
- Mãe? - perguntei rouca.
- Tu... - silvou - porquê que não foste tu em vez do meu menino? Porquê que és tu que ainda estás viva?
Sentei-me na cama, de boca aberta, senti os meus olhos a abrirem-se cada vez mais.
- O quê? O que estás a dizer mãe?
- Cala-te! Cala-te! Odeio-te, não me chames mãe, tu não és minha filha, nunca foste e nunca serás!
Avançou sobre mim e senti o primeiro toque do cinto na cara, onde ela nunca me tocava, não podia ter marcas visíveis, tinha de dar para tapar, tentei proteger-me, o pânico a crescer a cada cinturada que levava, o ferro a bater na carne, a morder, a abrir. Acertou-me na cabeça e fiquei tonta, o equilíbrio deixou de existir e quando saltei da cama para tentar fugir, caí de joelhos.
- Pensas que vais onde? - Gritou
Senti o choque sobre as costas, ela agarrou-me pelos cabelos e puxou-me, arrastou-me pelo chão assim, senti os fios a desprenderem-se do meu coro cabeludo e agarrei-lhe nas mãos para tentar desprender-me, ela acertou-me em cheio nos nós dos dedos, automaticamente apercebi-me do líquido quente a escorrer nas mãos, tentei novamente e ela mordeu-me, mordeu-me mesmo. Gritei!
Gritei como nunca tinha gritado, pedi socorro como nunca tinha pedido, e um minuto depois alguém a levantava, alguém me salvou. As lágrimas correram livres pela minha cara, onde me ardiam horrivelmente.
- Perdes-te o juízo? Estás louca? Vou chamar a policia, nunca mais farás algo assim, nunca mais!
Pai? Era a voz do meu pai, alterada mas era a dele, mesmo a gritar, era o meu pai. Chorei ainda mais quando o abraço dele me despoletou dores horríveis pelo corpo todo, costas, braços, mãos, cabeça.
- Oh meu amor, minha Cassandra, vou tratar de ti, nunca mais te largo, nunca mais!
Uma hora depois estava no hospital a apresentar uma queixa contra a minha agressora, tinham tirado provas suficientes para a deterem, inclusive ferimentos mais velhos...."
- Terra chama Cassandra... olá?
Pisquei os olhos e voltei-me para Vanessa, sorri.
- Desculpa, estavas a dizer?
Ela revirou os olhos.
- Estava a perguntar-te se querias sobremesa.
O empregado observava-me, o Samuel observava-me e ela também. Pigarreei e concentrei-me no presente.
- Só um café por favor.
Ele apontou e foi-se embora com um sorriso tímido.
- Hoje andas estranha Cass.
- Cansada, é só isso Nessie. - expliquei.
- Vê lá se acabas esse livro, precisas de férias! - disse ela a fungar.
Acenei com a cabeça e limpei a boca, depois de beber o resto da minha coca-cola.
- Escreves? - Perguntou Samuel.
- Trabalho a tempo inteiro - respondi sem grande emoção.
- Posso perguntar o quê?
Lerda como estava ergui a sobrancelha em sinal interrogativo.
- Que tipo de livros escreves... - incitou-me a rir-se.
- Bom... terias de ler um deles para descobrir. - desafiei.
- Sou capaz de o fazer.
Os cafés e a sobremesa chegaram, passou o tempo restante a fazer-me perguntas e quase mergulhámos em tópicos filosóficos sobre autores. Ele gostava de ler e eu gostei disso. Ele sabia manter uma conversa interessante e também gostei disso... estava a começar a gostar demasiado da presença dele. Depois de pagar-mos a conta voltámos a casa da minha amiga, que passou o tempo todo nas suas insinuações, eu aproximei-me um pouco mais de Samuel instintivamente e depois de ela acabar tudo o que tinha a fazer, a porta de casa dela foi selada. Pediram para que depois do trabalho ela se apresentasse na esquadra da sua zona. Aí despedimos-nos de Samuel, eu voltava para casa com a Vanessa.
- Ainda não acabámos com a nossa conversa - relembrou-me ele à parte, enquanto Vanessa entrava no carro.
Algo me disse que eu também queria continuar com a conversa então desta vez fui eu quem determinou o onde e quando.
- Tens razão, amanhã às nove no local do "costume" - salientei a fazer aspas com os dedos.
Ele achou graça.
- Concordo, até amanhã Cass.
- Até amanhã Samuel.
Entrei no carro e vi Vanessa sorridente, olhei para ela de sobrolho franzido sem perceber o motivo da felicidade dela.
- Acabas-te de saber que a tua casa foi vandalizada e estás a sorrir?
- Bom, não é todos os dias que eu vejo a minha melhor amiga descontrair numa conversa com um rapaz e a marcar encontros.
- Oh vá lá, não é um encontro.
Ela riu-se.
- Claro que não, é uma reunião de negócios.


17/08/2017
16:50
Qui.

Diana Silva






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