sábado, 19 de agosto de 2017

O Parca Negra (23º Episódio)

Assim que cheguei a casa, pus mãos ao trabalho. Não podia perder mais tempo ao estar parada. Verdade fosse dita os últimos momentos deram-me mais garra para trabalhar, e outra maneira de ver as situações.
" Era tão fácil estar ao seu lado, tão fácil como respirar, como se ele sustentasse os meus pulmões com cada beijo, como se erguesse o meu corpo com cada toque, por mais agulhas que sentisse debaixo dos pés, por mais impulso que sentisse bem no fundo do meu peito, eu sabia... eu sabia quem ele era na verdade..."
Quando dei por mim, já o crepúsculo aparecia pela minha janela, as cores laranjas e quentes cobriam-me as mãos e o meu local de trabalho, o meu nariz detectou o cheiro de algo guisado e a barriga roncou. Estaria mesmo com fome? Fiquei admirada comigo mesma. Espreguicei-me na cadeira e levantei-me, fiz com que todas as articulações e ossos estalassem e senti a leve tontura a desvanecer-se após um bom alongamento. Não devia estar tantas horas na mesma posição, mas quando me concentrava no trabalho era difícil mover-me. Fui para a cozinha, onde Vanessa mais composta agitava a colher de pau, no tacho, vi-a com atenção a remover a colher e a provar o molho, estava tão concentrada que não me viu a chegar, sentei-me a observá-la, acrescentou mais umas ervas e o aroma alterou-se quase de imediato, era agradável ter a casa envolvida nas especiarias, algo que já não sentia à muito tempo, muito tempo mesmo.
Pousei os cotovelos na bancada e tossi para chamar-lhe a atenção, o sobressalto dela foi mínimo, mas o suficiente para me aperceber que ela tinha estado totalmente alheia ao que se passava à sua volta.
- É raro estares assim tão embrenhada, é por causa da tua casa?
Ela suspirou e tapou o guisado.
- Sim e não.
Tentei manter-me relaxada para não dar a entender que estava preocupada, ela detestava quando alguém mostrava preocupação por ela. Talvez porque ela nunca o precisara, mas não podia negar que isso mexia comigo.
- Também não estás a ser muito objectiva. - continuei.
Ela sentou-se à minha frente e imitou a minha posição, talvez fosse mais reflexo do que intenção, encolheu os ombros.
- Cass, às vezes quando não estamos destinados a ter sorte, tudo nos corre mal.
Endireitei-me automaticamente.
- Como assim? Tu és linda, tens um bom emprego, homens à tua perna que se farta...  - nomeei e ao mesmo tempo vi a expressão dela fechar-se.
- Isso é tudo muito superficial, queria mesmo era alguém com quem partilhar a vida e que não se limitasse a estar debaixo dos meus lençóis.
Bati com o indicador no queixo.
- Talvez se deixares de procurar e de agires como ages te apareça alguém sério. Sejamos sinceras Nessie... não te portas da maneira mais correta com eles.
Ela brincou com os dedos e mordiscou o lábio inferior, o sobrolho franzido, expressão de alguém que estava completamente concentrada no que eu lhe tinha dito, só esperei que ela entendesse o meu comentário como algo construtivo. Não insisti mais, deixei-a pensar, limitei-me a fazer companhia no meio do silêncio, às vezes ajuda estarmos lá sem dizer nada, muitas vezes mais vale estarmos realmente mudos do que estarmos sempre a pisar o mesmo assunto, ela que reflectisse sossegada. Uns minutos depois vi o peito dela a encher-se e a levantar-se da cadeira para apagar o fogão. Abriu os armários para tirar os pratos e os copos, fui ajudá-la trazendo tudo o que faltava para a mesa. Quando acabei de nos servir dei a primeira garfada, estava delicioso, tudo no ponto, a carne quase que se dissolvia na boca. Por vezes esquecia-me o quão boa cozinheira a Nessie era.
- Isto está óptimo Nessie - elogiei.
Ela sorriu, um sorriso tímido ao qual eu ainda não me habituara.
- Obrigada amor. Já não punha os meus dotes de culinária à prova, à muito tempo.
- hum, hum... - estava de boca cheia não podia dizer muito mais que isso.
Mais umas quantas garfadas e Vanessa parou de comer, olhou para mim, o que por ato continuo me fez parar também.
- Sabes Cass, tens razão... usei os homens para preencher um espaço vazio e não deveria agir assim, só faz com que me vejam como um alvo fácil, se calhar está na hora de crescer e assumir umas rédeas... afinal não vou para nova e quero ter a minha família... quero ter os meus filhos.
Abri o meu rosto num sorriso enorme e peguei na mão dela, transmitindo-lhe apoio e força.
- Tu sempre foste uma rapariga com juízo, aproveitas-te o que tinhas de aproveitar, afinal não é crime divertires-te como bem entenderes.
 Ela agarrou-me nas mãos.
- Tens razão e está na altura de lutar por uma outra fase. Agora... vamos acabar de comer senão fica tudo frio e sem graça.
Ri-me, mas acatei o conselho dela, já à muito tempo que não comia uma boa refeição, feita com carinho e dedicação... sabia a isso na verdade.
Recordei-me da primeira vez que conhecera Vanessa.
"Estava ainda no hospital em recuperação, quando a meteram no meu quarto mesmo a meu lado, ela tinha uma perna engessada e vários arranhões na cara e nos braços envoltos em betadine. Tinha o olhar colado ao tecto, estava em estado de choque ainda, o meu pai tinha ido comer alguma coisa depois de se certificar que eu ficava mesmo bem, ele não me abandonava à horas e tive de usar todas as minhas forças para o convencer a sair um pouco, que ali agora já ninguém me poderia fazer mal. Tossi com a garganta irritada e fiz uma careta, ainda estava muito dorida em certas zonas do corpo. A rapariga piscou os olhos e olhou para mim, a expressão ainda meio estranha observou-me.
- Olá - cumprimentei.
Ela fez um trejeito com a boca, os lábios dela eram cheios e rosados, tinha uma ferida no canto em cicatriz.
- Olá...  - observou-me o máximo que pôde, a mão dela apontou para a minha cara e depois pousou na sua. - tu... também te trataram mal...
Acenei com a cabeça devagar, esta ainda me doía.
- Sim... mas já não fazem mais... sou a Cassandra. - apresentei-me com cuidado.
Ela não largou o olhar dela do meu.
- A mim também não... nunca mais... sou a Vanessa e gosto de ti.
Senti-me a corar e sorri, tentei mostrar-me o mais simpática possível, não estava habituada a dar-me com pessoal.
- Acho que também gosto de ti... - respondi. "
Senti Vanessa a abraçar-me pelas costas enquanto eu lavava a loiça.
- O que seria de mim sem ti. - confessou.
Tive de me rir.
- Provavelmente alguém com mais diversão e salsa à mistura.

19/08/2017
19:38
Sáb.

Diana Silva


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