terça-feira, 19 de setembro de 2017

O Parca Negra (27º Episódio)

Tinha tanto frio, não sentia a ponta dos dedos das mãos e dos pés, a nuca parecia estar tão dura e quebradiça como uma pedra de gelo, todo o meu corpo no entanto era semelhante a um pote de gelatina, pesquisei através de memórias, tentei perceber onde estava e com quem estava ou se estava na verdade sozinha e abandonada à minha sorte. O Telemóvel tocou e eu tinha dificuldades em encontrar os ligamentos do meu corpo, onde estavam os meus músculos guardados? Quero abrir os olhos mas não consigo, quero falar, gritar mas também não consigo, onde estou eu? O meu corpo? Só sinto gelo por todo o lado.
Não oiço nada a não ser o telemóvel a tocar, que som tão irritante nesta altura, tão inoportuno, não me deixa concentrar.
Estou a respirar ao menos sinto os pulmões a expandirem-se e nem sinal do coração. Parou de tocar por um momento, dois minutos depois voltou ao mesmo. Respirei fundo e procurei uma coisa de cada vez.
Pés, olá? Após um instante de concentração consegui unir-me com eles, após este momento foi fácil chegar às pernas, agora... mãos, eu sei que estão aí, mais umas leves inspirações e... ora bem... aí estão vocês!
Bem vindos braços. O Coração começou a fazer-se ouvir, a sobrepor-se ao som do telemóvel inútil, e quando a irritação levou a melhor de mim abri finalmente os olhos e lutei para respirar, para manter a calma. Estava sozinha no meu quarto.
- No meu quarto?
Olhei para o telemóvel em cima da mesa de cabeceira. Eram nove e meia, eu tinha posto o despertador para quê? Sentei-me devagar e reparei que estava com o meu macacão vestido. Então não tinha sido só um pesadelo. Olhei para as minhas mãos, ainda tinha as unhas sujas, tentei não pensar de quê e passei para o próximo tópico na minha cabeça. O Despertador era para o pequeno-almoço com o Samuel. Ouvi a porta a abrir e assustei-me de tal maneira que pulei da cama.
- Olá... - era Vanessa - Como estás?
Estaria ela chateada? Não parecia, mas ao mesmo tempo tinha o sentimento de culpa estampado na minha consciência.
- Estou a precisar de um banho e tu?
- Posso entrar?
Pronto, ela estava decididamente estranha.
- Nessie, sabes bem que não precisas de estar ai especada na entrada, nem parece teu... estás zangada comigo?
- Estou - disse ela sem hesitar.
Uau, nenhum floreado, tinha feito asneira da grossa, apesar de que se calhar se o carro tivesse estado à minha porta quem tivesse feito aquilo podia bem ter feito algo pior. Engoli em seco.
- Escuta... eu não sabia que ia acontecer aquilo.
- Não estou zangada por causa da merda do carro Cass.
Ela quando dizia palavrões era porque estava mesmo sentida.
- Então porquê? - perguntei confusa.
Ela suspirou e fechou a porta atrás dela, veio sentar-se aos pés da minha cama.
- Para além de te teres colocado em perigo, tiveste um ataque de pânico, à quanto tempo é que isso não te acontecia?
Encolhi os ombros, eu sabia bem a que ela se referia, como podia eu ter evitado aquele acontecimento? Eu não gosto de sangue ela sabia disso.
- Foi a emoção de tudo ao mesmo tempo, estou a passar por uma fase estupidamente insana, o meu puzzle tem peças em falta Nessie, precisava de sair.
Ela aquiesceu com a cabeça.
- Eu sei que andas com problemas, mas achas que eu aguentaria que a minha melhor amiga sofresse por algo que eu tivesse feito? Que a única pessoa que partilha de uma dor conhecida me fugisse por entre os dedos outra vez? Raios te partam Cassandra, eu até me habituei a essa tua onde de mulher das cavernas, mas não me prives totalmente de ti.
O nó na garganta apertou-se, só tinham feito mal ao Seat dela, não me tinham atingido sequer, qual era na verdade o medo dela? Eu não era o alvo, era ela, eu é que tinha de ter medo por ela, algo que crescia dia após dia. Primeiro a casa, agora o carro, que mais fariam quem quer que eles fossem?
Atirei-me para cima da minha melhor amiga e abraçamos-nos. Agora que olhava bem para ela, estava vestida como uma saca de batatas e com um carrapito totalmente despenteado. O nariz vermelho e os olhos inchados diziam-me que ela tinha estado a chorar e eu odiava que ela estivesse assim.
- Nessie, não te livras de mim assim tão facilmente, agora, como vais arranjar um carro?
Ela limpou o nariz à manga da sweatshirt.
- O seguro, dá-me um substituto, até conseguir outro. O meu bebé ficou totalmente destruído, partiram até o motor, o tubo de escape foi completamente espalmado e o resto... não é preciso dizer.
Arrepiei-me toda, só de me lembrar do cenário da noite anterior.
- Não digas, vi o suficiente, sabes que mais, vou tomar banho. Já comeste?
- Não tenho estômago para nada, mas faço-te companhia no café.
Saltei da cama e já estava a caminho da casa de banho quando a Vanessa se lembrou.
- Há e o Samuel está lá em baixo, disse que ele podia ter dormido aqui, mas teimou em dormir no sofá.
Fiquei estupefacta.
- E só agora é que me dizes isso?
- Relaxa, ele ainda ressona.
Não ia relaxar, não. O meu passado estava no primeiro andar de minha casa.
- Podes meter a chaleira a aquecer?
- Já lá estou! - respondeu ela.
Fechei a porta e olhei para o espelho, o cabelo estava revolto e as olheiras fundas, o macacão todo amarrotado foi a primeira coisa a sair, roupa suja, tirei a gargantilha e a roupa interior foi a seguir. Pus-me debaixo do duche num instante e sabendo que ele ainda estava a dormir, na minha casa, oh meu Deus, demorei-me um pouco. escovei os dentes no banho, escovei as unhas para tirar o sujo, pus o dobro do amaciador no cabelo e passei duas vezes o gel de duche pelo corpo todo. Sentia-me realmente suja.
Pus o toalhão à volta do corpo e fiz um turbante na cabeça, o cabelo dava-me pelas costas já, mais tarde ou mais cedo iria fazer uma visita à minha cabeleireira. Provavelmente a mulher já pensava que eu estava emigrada.
Sequei-me, e vesti-me num ápice, tirei a toalhinha da cabeça e penteei minuciosamente para depois deixar secar ao ar livre.
Chinelos nos pés e descer escadaria abaixo. Já cheirava a café.
Estava quase a entrar na cozinha quando reparei nuns pés grandes de fora do sofá, voltei atrás e fui observar, Samuel estava deitado de barriga para cima, só de calças, braço em cima dos olhos e boca entreaberta. Algo naquela expressão me fez querer abraça-lo, senti-me nostálgica, dei por mim a pensar nele como uma fofura bastante sensual enquanto dormia.
- Psst! Cass, apanha a baba, olha o café!
Fiquei completamente encavalitada, senti-me a ficar a ferver de baixo para cima, fui para a cozinha.
- Parvalhona - disse.
- Poupa-me, vê lá se resolves esses teus problemas, estás a precisar de um homem.


20/09/2017
01:26
Qua.

Diana Silva





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