sábado, 16 de setembro de 2017

O Parca Negra (26º Episódio)

Não me senti surpreendida, senti-me nervosa. O polegar que se alongava na minha mão deixava rastos de dormência atrás de si, uma sensação um tanto ou quanto satisfatória.
- Mais... do que somos agora?
Ele aquiesceu.
- Foi uma decisão única e exclusivamente tua.
Senti um baque no peito, uma pontada de culpa. Porquê que eu haveria de querer exclui-lo da minha vida? O que me fez ele? Se calhar nada, ou talvez algo horrível. Estava a olhar para os meus pés quando o indicador dele me reteu o queixo e me levou a olhar directamente para ele.
- Deixaste-me uma carta, antes de te ires embora, a carta que pedi para a empregada te dar, o perfume na carta, era o teu perfum
e, a cor era a tua favorita. Guardei-a estes anos todos, mas, não chegas-te a ler a carta toda... - ele calou-se e a sua expressão calma, aliviou um pouco da minha tensão. - Esperei estes anos todos por ti, tentei esquecer-te, viajei para outro pais durante uns meses, mas o sentimento e a promessa mantiveram-se presentes no meu consciente, voltei atrás e quando voltei já te tinhas mudado.
Estava a interiorizar tudo o que ele me dizia, quantos anos eram ao certo? eu tinha-me mudado à uns quatro anos talvez, após a perda do meu pai. A carta era minha? Porquê que na altura não tinha reconhecido a minha própria letra? Hum... sim, as belas das tecnologias. Ambos continuávamos a fixar o olhar um no outro, a situação estava a tornar-se demasiado confusa e estranha para mim, como é que eu poderia ser uma pessoa tão romântica. Por um qualquer toque de estupidez decidi amenizar o ambiente, arranjar uma desculpa para me afastar um pouco, alguma distância entre nós era saudável. Muito.
- Que pouco original Samuel, sabes podia acusar-te de plágio. Enviar cartas da autoria de outras pessoas? Nada fixe.
A boca dele descaiu e funcionou ele afastou-se ligeiramente deixando cair o braço. Começou a rir-se às gargalhadas. Observei-o a tentar conter o riso, aquele som era tão bom de se ouvir, o riso arrastado, gutural, livre. Ele abanou a cabeça e voltou a olhar para mim, de sorriso aberto e olhos semicerrados.
- Tu continuas a mesma em alguns aspectos.
Fingi-me ofendida. De onde vinha a inspiração? Deveria ser do ambiente só podia.
- Só em alguns aspectos? Que qualidades terei eu perdido?
- Nenhumas pelos vistos.
E... calei-me, sorri e senti a cara a aquecer. Oooook.... Hora de "zarpar" dali.
- Está a ficar tarde e tens de descansar. - comecei.
- Estou de folga amanhã.
Lá se foi a desculpa esfarrapada, tinha necessidade de sair dali para fora, de mexer as pernas, a fonte e os bancos misturados com a lua, davam um efeito demasiado inebriante. Comecei a enumerar todas as hipóteses, algo que me pudesse surgir na mente era bem vindo, o problema era que o meu corpo se contradizia e o meu cérebro parecia apelar a todas as minhas outras personas. Caramba cérebro indeciso. Conscientemente queria estar ali e ao mesmo tempo no meu cantinho. Sentia-me segura mas tensa, o instinto gritava me que algo não estava bem...
- Precisas de ir embora?
Ele apanhara-me a olhar para o relógio.
Abanei a cabeça... abanei mesmo.
- Podemos esticar as pernas? Caminhar devagar até à saída da rua dos bares?
Não hesitou, ergueu-se cheio de energia e espreguiçou-se, observei a parca, o movimento oscilante quando o vento tocou no tecido e retive a imagem dele mais um pouquinho. Já tinha alguma barba por fazer e eu achava isso deveras charmoso.
- Vamos?
Ele ofereceu-me o braço e eu tal qual uma dama não lhe fiz a desfeita. Afinal quem se pusera ali fui eu, culpa única e exclusivamente minha. Ultimamente dava a parecer que a culpa de tudo era minha, todo o mistério e mudanças repentinas, a falha na rotina... estava a sentir-me viva ultimamente, mas ai a culpa não era minha não, era dele.
Caminhamos silenciosos durante um tempo e aproveitei para observar tudo o que havia ao nosso redor, pessoas sorridentes, alguns a babarem-se. Alguns fumavam com uma garrafa de cerveja na mão, havia meninas em cada esquina, para todos os gostos, bêbados quase defuntos, com cheiro duvidoso encostados às bermas e pessoal recém chegado.
- Agora que penso, vieste como para aqui?
Olhei para ele confusa com o cruzamento de ideias.
- Como vim? - parei um momento e sorri - oh, claro, vim com o carro da Nessie. Estou a sentir-me uma autêntica usurpadora.
- Usurpadora? - ele sorriu.
- Sim, aproveitei que ela estava morta de sono para lhe pedir tudo. Se lhe pedisse o PIN do cartão de multibanco acho que ela também mo daria.
Riu-se para si, senti o corpo tremer com os espasmos do riso, só para ser discreto, que cavalheiro. Revirei os olhos e premi os lábios para me compor interiormente.
- Bom... Cassandra, lembra-me para nunca adormecer a teu lado.
- Acho que tu não serias tão fácil assim. - admiti.
- Ai não? - provocou.
Neguei com a cabeça a parecer uma criancinha.
- Não, tens treino militar, isso não seria algo óbvio?
- Se confiasse a minha vida nas mãos dessa pessoa não.
Inspirei bem fundo e soltei todo o ar dos pulmões, o leve descanso do órgão a mirrar deu para que eu me apercebesse do meu batimento cardíaco. Pulsava tão rápido como o bater das asas de um colibri, ou então em termos médicos uma taquicardia. Lá estava eu a divagar novamente.
- Bom, então onde deixas-te o carro da tua amiga?
- Não muito longe - senti-me a entristecer repentinamente. - estacionei o mais perto possível, não sabia se tinha tempo de te apanhar.
- Mesmo ponderando no facto de que chegaste quase uma hora antes?
- Como sabes isso? - agora estava surpreendida.
Desta vez ele revirou os olhos.
- Um morcego contou-me que havia alguém inadaptado ao local que pediu uma bebida demoníaca nada aconselhável para amadores, ou seja, sangue fresco.
Bati-lhe no braço, estava toda arrepiada.
- Ou seja.. o teu amigo da entrada andou a observar-me por ti.
- Na verdade andou a admirar o teu belo traseiro.
- Samuel! - guinchei.
Ele Riu-se e eu chocada.
- Não tem piada.
Ele limpou a vista e parou, deixando só o sorriso.
- Desculpa, mas o Fernando é um mulherengo de primeira, não te preocupes ele não volta a fazê-lo.
A curiosidade matou o gato não é?
- Porquê? Já agora?
Não tive tempo de saber a resposta. Quando olhei para o carro da minha melhora amiga estaquei.
O Seat Leon Tdi Cinza claro estava completamente destruído. Pneus rasgados, um deles meio dentro e meio para fora do vidro dos Para-brisas, os espelhos laterais no chão, quebrados e algo vermelho pintava todo o carro tinha montes de palavrões escritos, corri para o carro e pus as mãos na... tinta? Fiquei a olhar para as mãos. O cheiro metálico, podre subiu-me aos sentidos e comecei a salivar, ia começar com engulhos.
- Cass? O que é isto? Estás bem? Afasta-te do carro.
Ouvi a voz dele tão longe, tão afastada de mim. Só consegui olhar para o sangue que tinha das mãos e para o interior do Seat e lá dentro estava o corpo de um animal decapitado, a cabeça da cabra estava em cima do capôt espetada numa estaca. Senti os calores e os arrepios, o sangue decrépito enchia-me as narinas e todas as acções racionais que poderia tomar e que não estava a tomar. Samuel agarrou-me no ombros e com outra entregou-me um lenço verde nas mãos.
- Cassandra, senta-te não estás com bom ar...
Neguei com a cabeça eu não me queria sentar, eu queria fugir dali para fora, algo de muito macabro estava a acontecer com a minha melhor amiga e eu fora apanhada no meio da enxurrada. Primeiro a casa e depois o carro? Sangue? Animais decapitados?
Outro abanão.
- Cass? Deixa-me limpar-te as mãos, a policia já vem ai.
Nem o tinha escutado a fazer o telefonema, de onde estava a pairar eu? Um estado febril apoderou-se de todos os meus sentidos e a visão começou a tornar-se turva, tentei limpar o sangue das mãos mas nada saia, o sangue continuava ali, por mais que limpasse ele ficaria sempre ali. Engoli a saliva em excesso, o meu estômago ameaçava cada vez mais depressa com o vómito, o stress não me estava a deixar respirar.
Só tive tempo de pensar na minha melhor amiga e de chamar pelo Samuel na minha cabeça, já não via nada, a escuridão fez-me sentir bem vinda.

17/09/2017
01:00

Dom.

Diana Silva




Sem comentários:

Enviar um comentário

Deixa o teu Comentário