terça-feira, 18 de julho de 2017

O Parca Negra (14º Episódio)

- Um belo de um gelado de Tiramissu para sobremesa do Ben & Jerry´s, diz lá que não sou um amor...
- Encantadora de facto, um anjo caído do céu.
A minha voz estava rouca e muito provavelmente estaria com o cabelo despenteado a espetar em todas as direcções. Ainda sentia o ardor nos olhos e o nariz pingão mas esperei que a Vanessa não desse por isso. Mal tinha falado durante todo o jantar que tinha sido ela a preparar pois eu estivera na cama a tarde inteira, ela falava pelas duas e divertia-se pelas duas. Tentei o meu melhor para socializar.
- Hei, andas mesmo cansada não andas?
Oh não, aquela voz tão doce não... ela já tinha chegado a uma qualquer conclusão. Acenei que sim com a cabeça.
- Tenho andado a sobrecarregar-me nas horas.
Ela mete uma colher pequena na boca e saboreia, eu imito o gesto. Um manjar dos Deuses derrete-se lentamente na minha boca. Estava a precisar daquilo.
- Devias ter mais tempo para pausas, a tua editora é assim tão impaciente?
- Na verdade, são os leitores que o são.
- Isso é bom não é? - Diz ela com um sorriso enorme de orelha a orelha.
Encolhi os ombros e tentei fazer com que o assunto não me interessasse de todo.
- Sempre trabalhei bem sobre pressão.
Terminei o gelado e pus-me na bancada do lava-loiça e abri a água quente, um pouco de detergente e a espuma começou a criar bolhas.
- O ar livre ajudou-te?
Não respondi, fiquei absorta nos meus pensamentos como se ela tivesse puxado um gatilho sensível, recordei-me da perseguição, da descoberta e do seu toque, dos seus traços masculinos, a minha mente teimava em dizer-me que ele não me era estranho, que eu o conhecia e outro lado de mim dizia-me para o esquecer, para o libertar da minha cabeça confusa e torturada.
- Terra chama Cassandra! Alô? Alguém aí nessa cabeça de vento?
Já estava a enxaguar os pratos quando olhei para ela voltando à realidade.
- Desculpa Nessie, dizias?
Ela revirou-me os olhos de tal maneira que entendi que estava frustrada.
- Estava a perguntar-te se o ar livre te tinha ajudado.
- Ajudou, descobri novas coisas para usar - e não era mentira.
- Então deverias sair mais vezes... se bem que se é para ficares assim tão longe deves reduzir...
Olhei para ela de sobrancelha levantada e chocada, a miss noitadas a pedir-me para reduzir as saídas, logo eu, a freira mor de um lar de idosos que quase não via a luz do sol.
- Estou a gozar Cass - ela ri-se - não precisas de levar tudo no sentido literal.
Menos mal, pensei para os meus botões e aí sorri. Só mesmo aquela doida para me deixar escapar boas emoções.
- Assim já gosto mais, um sorriso. Estavas muito pálida.
Fiz-lhe uma careta e pus-me a arrumar a loiça enquanto a Vanessa ia à casa-de-banho lavar os dentes, a campainha tocou. Olhei para o relógio e eram vinte e uma da noite. Talvez fosse a vizinha para pedir algo que não tivesse, era uma senhora idosa muito querida e prestável, de vez em quando trazia bolinhos caseiros e até legumes a horta dela, tratava-a por avozinha, como nunca conhecera os meus avós sempre imaginei que deveriam ser como ela. Com um sorriso nos lábios abri a porta.
Congelei dos pés à cabeça, com a minha pasta do portátil nas mãos, o chapéu dos AC DC e a Parca, estava ele à minha porta. Sério, expectante e quando o seu olhar passou de baixo para cima até aos meus olhos sorriu. O meu coração acelerou. Falei o mais baixo que pude, literalmente sussurrei.
- O que estás aqui a fazer?
Ele falou no mesmo tom.
- Esqueceste-te de algo importante e decidi vir trazer-to em mãos.
-O quê? Não tens um paquete?
Ele ergue a sobrancelha e o sorriso dele aumenta. Estaria a tentar provocar-me?
- Pensei que gostarias de me ver.
Os calafrios aninharam-se no fundo da minha coluna deixando me a sentir uma bola de gelo no seu lugar.
- Porque achas-te tal coisa? - Perguntei com a voz a subir de repente de volume.
Ele manteve-se, como se não quisesse que mais ninguém soubesse que ele estava ali, o seu sorriso esmoreceu e entregou-me a mala que agarrei e pousei de imediato.
- Já te começas a recordar Cassandra?
- Vieste do meu passado para me atormentar?
Ele abanou a cabeça e notei no seu olhar triste.
- Precisas de reconhecer e perdoar. Tens de saber aceitar o que se passou para seguires.
- Tu não fazes sentido nenhum! Eu estava bem antes de apareceres do nada!
- Estavas? Estavas mesmo Cass?
Fechei os punhos e cerrei os dentes.
- Não me chames assim, não te conheço de lado algum, não te quero aqui. Vai-te embora!
Conforme ia para fechar a porta o pé dele interpôs-se.
- Não vou desistir, vou conseguir encontrar-te sempre e vais ter de conviver com isso.
Silêncio e ambos os olhares, o dele determinado e o meu furioso não se largavam, não sei ao certo quanto tempo ficámos assim, perdidos naquele momento de tensão. Não sei o que se passou ao certo até surgir o seu sorriso miúdo.
- Se quiseres conversar amanhã estarei no mesmo sitio. Podemos tomar um café.
- És louco. - atirei.
- Talvez, mas, eu sei o que estou a fazer e tu nem por isso.
Forcei a porta para que ele entendesse que a conversa ficara por ali e aí ele ergueu as mãos, tirou o pé e virou costas. Não fiquei a vê-lo sair, fechei a porta e peguei no meu portátil. Avancei determinada para a sala e naquele momento decidi que iria passar o resto da noite e a madrugada a escrever, tinha de o fazer, tinha de dispersar a camada nebulosa de pensamentos que me surgiam.
Vanessa ainda veio ter comigo pelo menos umas duas vezes até entender que estava tão embrenhada no meu trabalho que só respondia em monossílabos. Foi deitar-se e eu continuei a escrever que nem uma desalmada, a inspiração vinha tão rápido que quase não a apanhava. Tinha de continuar até formar calos na ponta dos dedos.
Tinha de continuar até estar tão extenuada que me poria a dormir o dia inteiro e assim não teria a infeliz ideia de tomar a decisão de aceitar o convite para um café...

18/07/2017
21:11
Ter.

Diana Silva  









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