sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O Parca Negra (25º Episódio)

Ao sairmos do bar, de um ambiente quente para um ambiente fresco senti a pele dos braços a arrepiar, contive-me. Caminhá-mos silenciosamente até ao Blues, e discretamente entrámos, ficámos num cantinho pouco iluminado com bastante privacidade, uma mesa redonda e pequena que não nos dava muita margem de manobra, não nos afastava quase nada mesmo, as cadeiras simples em madeira com o almofadado bordou, agora que expandia melhor a minha visão, o bar era todo muito bem decorado, transportando-nos realmente para outra época.
Não estava muito cheio, mas da última vez também não tinha estado, só podia supor que este fosse o movimento regular dele, a empregada foi rápida a alcançar-nos, eu pedi um hi-fi e ele um Martini.
- Amante de sumo de laranja? - perguntou com o seu melhor tom de brincadeira.
- Na verdade é da vodka, e tu? Amante de coisas velhas?
- Clássicos na verdade - sorriu abertamente.
Não pude deixar de reparar na expressão dele, a maneira como os seus olhos se semicerravam enquanto sorriam, as maçãs do rosto que ficavam encantadoras e redondas. Dei um abanão mental a mim mesma.
- Chama-lhe o que quiseres - disse - que idade tens? Cinquenta?
- Trinta na verdade e bom gosto.
Ri-me com a brincadeira.
- Não sei se um Martini se encaixa nesse parâmetro.
Não sei o que me aconteceu mas dar-lhe conversa estava a divertir-me, espicaça-lo era estimulante, para os meus sentidos.
- Não me referia à bebida - respondeu-me com um olhar sugestivo.
Bloqueei, senti-me de repente a corar e o que me salvou foi a empregada com as bebidas, dei o primeiro gole e deixei escorrer.
- O que te trouxe aqui? De certeza que não foi para me dares boleia.
Inspirei, tentei convencer-me que o rubor se devia ao álcool.
- Pensei que esperar pelo pequeno almoço levasse demasiado tempo.
Ele ajeitou-se na cadeira e abriu a parca, colocou o seu melhor ar de desafio, estava pronto para qualquer investida minha.
- Podes começar...
- Não - interrompi - começa tu por favor, de onde conheces o meu irmão, ele não tinha melhores amigos, ele ter-me-ia dito se tivesse...
Ele pigarreou e bebeu um gole de Martini sem qualquer careta.
- Custa a crer Cass, mas a verdade é que eu olhava para ele como um irmão mais velho, nós cuidava-mos um do outro como tal, e os dois anos no exército, não pareceram ser só dois anos mas sim uma década... - ele inspirou, eu estava atenta e disposta a ir até ao fim - Ele era brilhante, sobrevivi ao primeiro ano devido ao apoio dele, e ele falou-me bastante de ti, via-se que eras um orgulho para ele. Quanto mais o escutava mais embrenhado ficava. Não era suposto ele ter ido naquela missão, disse-lhe que era uma missão suicida mas ele era difícil de se mover. Depois de receber a noticia e de ir a tua casa...
Surgiu um clarão na minha mente, um soldado, olhos azuis, gelados e lacrimejantes, o meu coração acelerou.
- Eras tu? O homem eras tu? - estava mesmo surpresas.
Ele assentiu silenciosamente.
- Mas como é que eu não me lembro de ti, tu sabes tudo sobre mim... disseste que lhe tinhas feito uma promessa!
A minha intenção não era de todo enervar-me, não queria fazê-lo sentir-se culpado de algo, mas senti que ele me devia explicações, justificações de tudo, de todas as suas atitudes, a carta, a perseguição, o facto de me fazer sentir como me faz sentir, não fazia qualquer sentido, de todo.
- As opções foram tuas Cassandra, foste tu que quiseste esquecer, seguir em frente, no entanto não creio que isso te esteja a fazer bem. Prometi ao teu irmão que cuidaria de ti, que te protegeria de qualquer coisa se algo lhe acontecesse a ele e tenho cumprido com ela.
- Não faz sentido, do que terias de me proteger? A minha vida é super monótona, não é que algum dos vilões dos meus livros ganhem vida e venham atrás de mim.
Ele tentou conter o sorriso.
- Não tem piada Samuel.
Vi-o estremecer à minha frente, os braços dele ficaram arrepiados e o olhar intensificou-se.
- Já à muito tempo que não te ouvia a dizeres o meu nome. - confessou.
Bebi um trago enorme da minha bebida, precisava de clarear as ideias.
- Preciso de ir lá fora, queres ir comigo?
- O que quiseres.
Terminá-mos as bebidas e tratámos da conta, saímos do bar sem demora, não consegui sentir o ar fresco desta vez, parecia que tudo me sufocava, a voz do Samuel, as suas palavras, o ambiente, tudo me punha um nó horrível na garganta e um monte de fumo negro no cérebro.
- Anda. - ele pegou-me na mão e guiou-me.
O silêncio que surgiu a seguir foi perfeito, o suficiente para pôr as ideias no lugar e para ganhar tino no assunto, tinha de ganhar forças. Confiei totalmente nele, ele fazia com que me sentisse segura, sabia que ele não deixaria que nada nem ninguém me tocasse e isso era reconfortante. Passámos o bar gótico e atravessámos uma ponte que estava oculta pelas árvores, a madeira rangeu, protestando com o nosso peso, atravessámo-la rápido, não demorou muito tempo até começar a ouvir um som calmante, limpo. Seria um riacho, ou um lago com uma fonte talvez. Samuel afastou uns arbustos e lá estava a origem. Uma pequena cascata, dois degraus a deixares a água escorrer livremente, a fonte iluminada com tons verdes e os vultos dos peixes a nadar criando pequenas ondas. Existiam dois bancos, um de cada lado e ele orientou-me para o que estava à nossa frente.
- Ninguém vem para aqui, temos a nossa privacidade, podemos falar mais à vontade.
Assenti com a cabeça, sem palavras.
- Algo mais que queiras saber?
- Quero saber tudo.
- Pensei que não querias o teu passado de volta. - disse ele.
Encolhi os ombros.
- As minhas memórias estão a dar cabo de mim, cada vez mais me recordo daquilo que não quero, não posso fugir dele.
- Do que te lembras?
Inspirei bem fundo e apertei bem as mãos uma na outra.
- Para além de uma mãe falsa, das agressões e de um irmão morto... nada mais.
A respiração dele falhou, a expressão dele mudou por completo.
- Sim, também me recordo de ti no hospital. Foram dos piores momentos da minha vida. - ele agarrou-me nas mãos, passou os dedos em cima das finas e quase imperceptíveis marcas de dentes - ainda tens marcas, juro que se ela ainda fosse viva...
A sua expressão era ameaçadora, do nada senti vontade de o confortar a ele.
- Mas já não está, ela provou do seu próprio veneno e depois cortou os pulsos, já não faz mais nada neste mundo.
- Merecia ter sofrido. - continuou.
- E sofreu... acredita que sofreu Samuel.
Ele suspirou, mas não largou uma das minhas mãos e por mim tudo bem, sabia bem ter a mão dele, quente e grande sobre a minha.
- Não te lembras do médico a que foste?
- Médico? - perguntei confusa.
- Sim, o que te hipnotizou.
Senti todo o canto do meu corpo a paralisar e a arrepiar-se, claro que me lembrava. Foi o médico que me ajudou com os traumas, que me ajudou a refazer a vida, sem as sessões de hipnose ainda estaria a viver de psicólogos e calmantes. Fiquei inquieta com a memória que surgiu.
"A sala era toda ela em tons de creme, um tom neutro, existia uma secretária uma cadeira e dois cadeirões dispostos um à frente do outro. O médico era estrangeiro, chamava-se doutor Duran e estava na casa dos quarenta anos, tinha um ar tão frio que metia medo. Entrei naquela sala somente três vezes e fora o suficiente para nunca me esquecer da postura daquele homem. Quando iniciava as sessões fazia sempre o mesmo discurso, ele trabalhava com base no som, pedia para que fechasse os olhos e que escutasse com atenção o som do relógio da sala, até finalmente ser só silêncio."
- Cass? Estás pálida, sentes-te bem?
Dei por mim a abrir os olhos, oh meu Deus.
- Desculpa... hum, sim estou óptima, são... as memórias - bolas esqueci-me de respirar.
- Queres continuar?
- Diz-me por favor o que foste para mim! - tinha de saber.
Ele esfregou as mãos e o seu sorriso foi triste.
- Nós já fomos mais do que somos agora Cass.


26/08/2017
01:44
Sáb.

Diana Silva



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